Veio Santa Alface a este mundo pr' acalmar nossos desassossegados estômagos. Seja feita a sua vontade. Amén

Thursday, August 17, 2006

A outra face da Liberdade

Quem é afinal a Sra. Liberdade? Podiam seguir-se linhas e linhas de conceitos político-sociais que toda a gente conhece. Tomemos, nesse campo, a liberdade como a ausência de um regime totalitário. Tomemos um regime demoliberal. Não existem perseguições políticas, sociais, religiosas, étnicas, etc.. Tomemos Portugal como exemplo.

Essas perseguições não existem mesmo? Pergunte-se caro leitor, não se trata apenas de retórica. É evidente que estas perseguições ainda persistem, mas por agora simplifiquemos um pouco as coisas.

Olhe à sua volta e observe: a senhora da padaria teve as mesmas oportunidades de ir à escola que o douto leitor? Terá crescido numa família literata como o senhor? Pode continuar a observar outros que o rodeiem. Agora diga-me se isso resulta da nossa fantabulástica meritocracia, do sucesso glorioso de sua família, do esforço dos seus pais e por aí adiante. Pode dizê-lo, não tenha medo. Se a sua família é de facto tão bem sucedida, olhe um pouco para trás e veja. Veja como é que a sua família chegou ao sucesso (imagino que explorando alguém; imagino passando por cima de alguém, mas diga-me, por favor, se é mais um equívoco).

Ao que eu queria chegar: “igualdade de oportunidades”. Será que a temos? A associação de igualdade a liberdade é incontornável: apenas quando nos deparamos com as mesmas oportunidades dos outros, podemos escolher, optar por aquilo que queremos. E essa escolha é, em parte, a Liberdade. Agora, enquanto persiste a discriminação é criado todo um condicionalismo a essas opções, “Ai o amarelo é uma cor tão feia; já o azul… coisa mai linda”.

Creio que se chega a um certo ponto da nossa existência em que, mais tarde ou mais cedo, tomamos consciência de que podemos optar. Pelo amarelo, se assim o entendermos. Mas mais que isso é optar por aquilo que queremos ser, pelas referências que um dia queremos ter em nós. Já não absorvemos toda e qualquer influência, como acontece numa fase primária da nossa vida – ou seja, quando estamos restringidos aos grupos primários como a Família, os colegas de escola, o grupo de amigos, etc. –, porque alcançamos uma qualquer maturidade que nos permite seleccionar essas influências dos ditos grupos de referência, bem como assumir a nossa responsabilidade face a estas opções. O que quero dizer é que, mesmo sendo alvos de toda e qualquer influência, porque o somos sempre, temos a capacidade de escolher as que queremos ver em nós, as que consideramos positivas. Esse será talvez um estado de liberdade, porque é-nos dada a oportunidade de escolher.

No entanto, sempre que o controlo social (mesmo aquele considerado indispensável para manter a coesão social) é exercido, essa liberdade é-nos retirada. Sempre que no televisor nos mostram uma forma de viver, nos repetem vezes sem conta a forma “acertada” de construir a nossa vida; sempre que nas histórias da carochinha o objectivo é a menina arranjar um menino e daí ter uma casinha e uma data de pirralhinhos; sempre que nas lojas se vê a mesma roupa… Essa Liberdade não nos é retirada?

Mais perniciosa será a influência dos ditos opinion makers: como se já não bastasse a desinformação de que somos vítimas todos os dias, ainda vêm uns quantos senhores dizer-nos como pensar sobre determinado assunto, qual a forma politicamente correcta de o fazer, qual a forma que mais lhes interessa para manter o seu tão bem conseguido status. Quem está familiarizado com conceitos sociológicos tem a perfeita noção (ou poderá optar por tê-la) de que tudo serve para manter o status quo, ou seja, tudo o que vai sendo construído socialmente serve para manter as coisas tal como elas estão. Mesmo que o empregado de escritório se sinta injustiçado com os €2,50 que lhe pagam à hora, vivendo num meio onde persiste a ideia do “tens de começar por baixo e depois, se fores realmente bom, já podes ganhar os milhões que o teu patrão ganha”, ele conformar-se-à com este estado que considera iniciático.

Não se trata de ser um bom ou mau meio de mobilidade social (embora não o considere perfeito, sei que é mais fácil e, por isso, mais justo do que há uns tempos atrás; a partir daí, só os valores de cada um ditam a sua capacidade, ou não, de passar por cima de tudo e todos). Mas sim, dizia eu, de uma forma de manter as coisas tal como elas são.

Desta forma, chegamos a outro aspecto da Liberdade: quando não concordamos com o estado das coisas, o que podemos fazer para perfurar o status quo? Rezar a todos os santinhos para nos sair o euromilhões? É uma opção. Mas e se forem constituídos movimentos sociais? Talvez lhe pareça, caro leitor, que fazer uma manif aqui e ali não sirva de nada (talvez retire desse preconceito um qualquer prazer simplista de minorar todo o activismo social). Talvez lhe pareça que é uma total perda de tempo e que assim as coisas não vão mudar. Talvez a sua escolha passe por se juntar a um qualquer partido, daqueles mais consolidados para um dia conseguir um estatuto que lhe permita fazer alguma coisa para mudar/manter o actual estado social. É a sua opção e, mesmo que fosse outra, o Caracol respeita-o.

Peço-lhe apenas que respeite as opções dos outros. Peço-lhe que não subestime o trabalho das muitas associações e dos muitos movimentos que, com o seu árduo trabalho, vão amenizando a gravidade da situação e, em conjunto com o poder político que a Democracia lhes dá – isto é, o voto e a elegibilidade –, vão tentando mudar a nossa sociedade.

Resumindo, aquilo que mais confusão me faz, a nível pessoal, é o conformismo em que a nossa sociedade caiu. Digo caiu porque me parece haver ainda muito a fazer. Ser livre é poder ser feliz. E quando grande parte da população anda a tomar anti-depressivos, não me parece que essa felicidade social tenha sido alcançada. Mais grave ainda, não me parece que as pessoas estejam cientes de que podem fazer mais pela sua liberdade.

A outra face da Liberdade, a lírica, já a minha outra parte tratou e, se não me engano, continuará a fazê-lo.

Nairobi

2 Comments:

Blogger Caracol Amarelo said...

Bom... isto tá longo e tal, mas vou salientar algumas partes. As manifestações são muito giras e tal, mas há qualquer coisa que nelas não tem funcionado. O pessoal aí do PCP pega nos seus cartazes e vão para a assembleia da república arrebitá-los (salvo seja, mentes perversas). Há uma certa repetição nas formas de manifestação, penso que podiam arranjar algumas originalidades. Depois sinto-me frustrado quando há manifestações como: "O meu filho tem ceborreia, quero que lhe tirem os carrapatos". Pessoalmente, não sou muito dado a manifestações de índole política, muito menos religiosa. Há "manifs" que valem a pena, tipo agora contra a guerra entre israel e o líbano. Sim, o líbano, porque ainda ninguém se perguntou porque é que o líbano não se defende dos ataques de israel com o seu exército. A resposta é muito simples, porque o hezbollah é, nem mais nem menos do que, o exército do líbano.
As verdadeiras causas, raramente, se manifestam em frente à assembleia a gritar ao primeiro ministro palavras "simpáticas".

Multifasciatus

5:19 AM  
Blogger Caracol Amarelo said...

eu também não concordo com todas as manifs. mas desde que sejam pacíficas, parecem-me legítimas. quando não concordo, limito-me a não participar. se sou contra uma delas, posso eventualmente participar numa outra manif que defenda a minha posição. mas eu limitei-me a dar um exemplo de activismo. existem muitas outras formas de agir, existe o trabalho junto da população, não só para divulgar esta ou outra convicção, mas sobretudo para minorar esta ou aquela injustiça, em termos de (des)igualdade de oportunidades.
as manifs são apenas a face mediática e, a meu ver, devem ser utlizadas nas situações em que a urgência em demonstrar a nossa posição face a determinado facto seja justificada pelo precipitar dos acontecimentos (p.ex. a recente guerra). de resto, só as concebo enquadradas numa acção de sensibilização para determinado assunto (mas essa é a minha maneira de as ver, haverá quem não o faça assim).


Nairobi

5:29 AM  

Post a Comment

<< Home